Reproduzo o artigo de Edilson Pereira publicado na edição de domingo do jornal O Estado do Paraná e disponível no Portal Paraná On Line. Ele resenha o livro "Comunista de Casaca" de Tristan Hunt.
Achei simpática a caracterização de Engles feita no artigo, apesar de saber que sua contribuição foi bem superior. Acho engraçado que quando se fala de Marx, Engles, Lenin, e outros líderes de esquerda, muitas vezes seja dado mais atenção a fatos (ou suposições) sobre sua vida pessoal do que sobre seu pensamento e ações públicas. Acho que a obre que ele construiu e a que ajudou a construir com Marx são de fundamental importância. Essas obras podem ajudar a humanidade a evitar a barbárie absoluta.
Vamos ao texto: O comunista que tinha grana
Dizem que por trás de um grande homem sempre há uma grande mulher. É um provérbio idiota. Claro que mulher é colírio para os olhos, oxigênio para os pulmões, música para os ouvidos, perfume para o nariz, alimento para o espírito e nua na cama é melhor ainda. Claro que algumas mulheres se destacam por uma personalidade forte e segurar a barra do marido. Basta citar o caso de Clara Schumann, que declinou da própria carreira para divulgar a obra do marido morto.
Mulher, desde que não fale muito, é tudo. Mas um grande homem - e também uma grande mulher - precisa mesmo é de quem bote grana no projeto dele. Sem grana nem fusca vai para frente, porque precisa abastecer no primeiro posto. E, se for na banguela, esborracha na primeira curva. Mulher, a não ser uma Peggy Guggenheim, que nem se chamava Peggy e sim Marguerite e era deficiente física, não pode fazer muita coisa. Nem ela, nem ninguém. É preciso capital na jogada. Que talento sem capital, é como Cinderela sem fada madrinha. Não tem príncipe que dê jeito.
Todo projeto que não inclua ser ermitão, faquir ou homem bomba, requer dinheiro. E no caso do homem bomba, é necessário dinheiro para comprar as bananas de dinamite que serão amarradas ao corpo, embora sempre tenha um Bin Laden por perto para financiar o espetáculo sem se preocupar em retorno. Então, se for pegar para valer, só valem mesmo os dois primeiros casos. Gravar um CD vai grana e publicar um livro mais ainda. Uma indicação forte pode quebrar um galho. Fazer um filme nem se fale. Montar uma peça, ainda que seja Ralé, tem custo. E para o sujeito ser pintor, ou vai para a publicidade levantar dinheiro e se frustrar para o resto da vida ou se pendura em alguém. Claro que este alguém pode ser uma lei de incentivo cultural. Não há meio termo.
Isto é desabafo? Claro que não, companheiro. São coisas que ficam na cabeça do sujeito depois de ler ‘Comunista de Casaca - A vida revolucionária de Friedrich Engels’ (Editora Record, 470 páginas), escrito por Tristan Hunt, professor de História da Universidade de Londres e colaborador do The Guardian, The Times e do London Review of Books. O autor é um especialista em cultura inglesa e pensamento político do século 19. O livro em questão é a biografia leve do sujeito que dividiu com Karl Marx a glória de fundar o marxismo, uma espécie de credo político com pitadas de fervor teológico que levou somente o nome do segundo, mas não existiria se não fosse a grana do primeiro.
Engels não ficou só no depósito bancário. Ele tinha tutano. A ponto de escrever vários livros e redigir O Manifesto Comunista com Marx. Ele não era um José Roela. Engels era um sujeito sensível que se impressionou com a miséria dos operários das fábricas de sua família e a partir desta indignação fez um estudo detalhado da situação da classe operária na Inglaterra. Muitos dos impasses que os futuros dirigentes políticos, no século 20, encontraram foram resolvidos não com um mergulho na obra de Marx, mas sim na de Engels. De tal forma que quando havia regime comunista na face da Terra, em lugares às vezes remotos, o ritual em manifestações coletivas era botar uma estampa de Marx ao lado de outra de Engels e depois o resto da curriola, Lênin, Stalin e o sujeito que mandava no país: Fidel Castro se fosse Cuba ou Mao Tse Tung se fosse a China, Tito na Iugoslávia e assim por diante. Mas como as gerações atuais não têm obrigação de saber quem era este sujeito, além de ser aquele cara que ficava ao lado de Marx na iconografia socialista, é perfeitamente compreensível que alguém pergunta: ‘E quem foi este Engels?’.
O livro responde satisfatoriamente. Mas, para resumir, podemos dizer que foi uma figura curiosa, um sujeito que defendia os trabalhadores e os pobres, mas era muito rico. E na condição de muito rico, um capitalista endinheirado, durante quase quarenta anos financiou o amigo Karl Marx em suas pesquisas sociais para acabar com o capitalismo e com capitalistas endinheirados como ele. Além de um grande paradoxo, pode parecer que não é nada. Mas a grande verdade histórica é que Karl Marx, com o financiamento a fundo perdido de Friedrich Engels, pode se dedicar a estudar a melhor forma de acabar com o capitalismo, elegendo um sistema mundial de poder sob controle dos operários, sem que ele, Marx, tivesse a necessidade de bater ponto em nenhuma fábrica, escritório e tampouco enfrentar o mau humor de nenhum patrão ou chefe. Sem correr o risco de ficar desempregado ou de ver a sua empresa de repente migrar de plataforma para outra que ele nem sabia onde ficava e como aquilo ia funcionar. Marx era sortudo? Necas. Ele apenas teve um grande financiador que se chamava Friedrich Engels. E não fosse Engels, dá para cravar sem medo de errar, não haveria marxismo. Pelo menos como viemos a conhecer.
Engels cuidou das filhas de Marx, aguentou os faniquitos do amigo, botou grana num projeto sem a menor perspectiva de retorno financeiro. Isto se chama mecenas. Enquanto o amigo tentava destruir o capitalismo, Engels se divertia caçando raposas (não é metáfora, eram raposas mesmo), era membro da Bolsa de Valores, bebia muito, gostava de mulheres e elas gostavam dele, gostava de uma salada de lagosta, cerveja, um Château Margaux 1848 e mulheres, de novo. Aí, quando estava com quase cinquenta anos, em vez de se aposentar depois de trabalhar vinte anos na empresa da família como grande magnata da indústria têxtil, Engels foi fazer revolução com o amigo. Ou, na interpretação de outros capitalistas, ele foi bagunçar o coreto com a ralé, em vez de ir para um clube de Londres jogar xadrez.
Claro que descrevendo a coisa deste jeito, dá a impressão de que Marx era um desmiolado e Engels um capitalista querendo ver o circo pegar fogo - ou se divertindo por achar que o circo nunca pegaria fogo. Não é isso. O livro traça um panorama da vida política e social do século 19, das relações entre as ideias emergentes. Por exemplo, Marx se entusiasmou com as ideias de Charles Darwin e este viu a correlação que o primeiro queria fazer com suas descobertas como nada além de ‘uma bobagem’. Na realidade, pode-se dizer que ambos, mais Sigmund Freud foram os três grandes pensadores a influenciar a mudança de comportamento no século posterior.
Talvez o grande legado de Engels, como acentua Tristram Hunt no final do livro, esteja na concepção humanista de que o homem não precisa explorar o seu semelhante para viver bem. Engels estava convencido de que a era moderna reservava para a humanidade uma convivência mais digna. E tanto ele quanto Marx tentaram provar cientificamente que isto era possível. Claro que quebraram a cara. Se o capitalismo produzia abundância e esta abundância não era distribuída igualmente entre os que a produziam, os dois concluíram que isto decorria de uma distorção do sistema capitalista, que devia ser corrigida por um outro sistema que produzisse tanto quanto ele, mas que dividisse de forma que ele não fazia. Foi assim que chegaram ao socialismo científico.
Embora os regimes que no século 20 reivindicaram o legado destes dois teóricos tenham fracassado, a realidade também é que o velho capitalismo nunca deu e continua dando a menor bola para os desvalidos do planeta. No final da história, um capitalista que financia pesquisas que levem ao fim do capitalismo em nome da humanidade, é um sujeito que merece ser melhor conhecido. Para, talvez, ser seguido. Pelos seus próprios pares.
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