terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

A chuva

Esse clima me motivou a reeditar um texto que escrevi há alguns anos. Acho que tem a ver com esses dias.

Ya mis ojos son barro en la inundación
que crece, decrece, aparece y se va
Bersuit Vergabarat - Vuelos

Em algum momento a chuva começou. Mas era como se nunca tivesse começado. Era como se sempre existisse, como se nunca tivesse caído uma primeira gota. Um tomar conta de tudo, formando poças que crescendo se uniam formando poças maiores que crescendo se uniam formando poças maiores. Tudo num ritmo frenético, que, de constante, parecia parado. Cada gota era a mesma de antes de antes e de depois.

Telhados, muros, terra, calçadas, asfalto, folhas, troncos, galhos, pêlos, pele, couro, carros, postes, poças, lagos, rios, corredeiras sendo açoitados pelas gotas, cada vez mais grossas. Água que escorria, penetrava e encharcava, tornando tudo pesado, mole, frio e escuro.

Fomos embora bem no começo do que sempre nunca existiu. Corríamos para abrigos que não alcançávamos. Tentávamos entrar em casas que não eram nossas. Parávamos sob abrigos que não protegiam. Seguíamos tentando, mas não havia lugar. Então, quase sem perceber, nos separamos. Deixamos para depois.

Quando já trancados, ouvíamos o barulho da chuva, contínuo, se tornando silêncio. Um silêncio separador, como a chuva entre nós. Então não havia mais tempo, nem noite ou dia. Só um intercalar de claro e escuro, ou escuro e mais escuro.

Então esperamos.

Pela janela tudo era cinza e molhado. Só o chão não era cinza. Era marrom do barro roído pelos pingos, pelas corredeiras.

Esperamos.

Chegamos a nos acostumar. Não como o olho se acostuma com a escuridão. Nos acostumamos como se acostuma com a espera, que cada vez sempre parece mais longa, que nunca vai acabar. Nos acostumamos e esperamos.

Nas noites que vieram, no silêncio do barulho sem fim, sonhávamos ouvir vozes.

Sustos.

Nos dias que vieram, ficávamos imaginando se havia alguém lá fora, naquela chuva. Éramos muitos, todos sozinhos.

Sustos.

Continuamos esperando, mas não sabíamos mais o quê.

Agora, lá fora, os pássaros cantam e o sol brilha entre as folhas e as flores. Da terra seca sobe uma leve poeira que brilha e reflete a luz.

Mas a chuva continua, cada vez mais forte.