Hoje morreu a minha mãe. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: "Sua mãe falecida: Enterro amanhã. Sentidos pêsames". As palavras iniciais do livro “O Estrangeiro” (1942) de Albert Camus entraram para a história da literatura como o início mais marcante de um romance.
Retomo essa passagem, e o conteúdo do romance do escritor franco-argelino para colocar os fatos recentes no campo da ficção, mesmo sabendo que muitas vezes há mais realidade nos livros que na vida. No meio do romance, o personagem central encontra árabes na praia e, ante a possibilidade de uma luta, mata um deles com tiro de revolver. Em seu julgamento, o assassinato do árabe perde importância, e o centro passa a ser a apatia em relação à morte da mãe.
Décadas depois a banda de rock inglesa The Cure, transforma a cena do assassinato em cancão. “Killing an Arab” (1978) foi o primeiro compacto lançado pela formação liderada por Robert Smith. A segunda estrofe dessa canção expressa perfeitamente o que quero dizer:
“Eu posso voltar atrás, ou eu posso disparar a arma, Olhando para o céu, Olhando para o sol, Qualquer escolha que eu faça, Tem a mesma importância: Absolutamente nenhuma.”
Tudo isso para mim era o que entendia como o centro do pensamento existencialista do Século XX. A apatia como antídoto. A vida banalizada. A morte como objeto estético (e patético, com o perdão pelo trocadilho).
Osama Bin Laden era um Árabe nascido em Riad. Integrante de uma próspera família que negociava petróleo. Teve negócios com os Estados Unidos, em particular com a família Bush.
Os detalhes sórdidos que transformaram o sócio em inimigo número um estão por aí, numa mistura assombrosa de ficção e realidade que faria os contos de cego da biblioteca parecerem fábulas infantis. Nem o mais talentoso escritor do universo seria capaz de conferir verossimilhança à falcatrua estadunidense.
Osama foi morto na noite de primeiro de maio. Assim como no romance de Camus, ou na canção do Bob Smith, a morte teve mais importância pela estética do que por qualquer outro motivo.
Vale lembrar que Killing an Arab foi proibida nos EUA. Consideraram a canção agressiva ao povo árabe, o que é uma baita ironia. Mas o fato de Osama ser árabe e mulçumano também é uma ironia. Ele esteve à venda e depois se arrependeu. Talvez estivesse expiando seus pecados perante Alá, empreendendo uma tosca guerra “santa”.
Ajudou os EUA a expulsar os Russos do Afeganistão depois percebeu que não passava de um objeto a ser descartado no momento certo. E foi, descartado no momento certo. Sua morte é um breve ato de um espetáculo que deve fazer sentido para o público (pelo menos boa parte dele). A popularidade de Obama disparou. Ele não será julgado. Deve ter chorado no enterro da mãe.
Há quem duvide da morte de Osama. Eu não. Eu duvido da sua vida.
4 comentários:
A frase final é sensacional. Estética. rs
Vou postar no Face (com os devidos créditos).
Ivan, adorei o texto! Abraço do Homero.
Caro Ivan,
Embora goste mais de músicas como o hit "Inbetween days" e "Friday I'm in love" (esta mais 'up'), lendo seu texto eu lembrei vagamente de um clipe que acho que é da música "Close to me", porque aparecem os membros da banda trancados claustorfobicamente dentro de um armário, passando um ar de sufoco, que é um pouco a sensação que também se sente com a presença opressiva do imperialismo e a enxurrada de mentiras de sua imprensa servil.
Nos versos de "Close to me", imagino um americano pensando:
I've waited hours for this [pela morte do Osama?]
I've made myself so sick [e quem disse que voces nao vao continuar?]
(...)
Just try to see in the dark [Maioria dos americanos continua no escuro de informações verazes]
Just try to make it work [Essa economia nao funciona mais...]
A raiva dos povos nunca esteve tão CLOSE to the Americans como hoje.
Dodô Pop! Obama Bow!
Primeira vez no teu blog. Adicionei. Muito bom texto. A frase inicial de O Estrangeiro é uma das mais fantásticas que conheço. Abraços. Marcos Macedo - Folha de Santa Felicidade.
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