domingo, 21 de junho de 2009

A vida de cão, na luta por um brasil melhor

Camponês relata morte de 4 guerrilheiros
"Eles já sabiam que iam matar", diz homem que levou militares ao local onde ocorreu a chacina que fez guerrilha do Araguaia ruir

Nelson Cortes, que pede indenização da Comissão de Anistia, afirma ter servido à força militares em busca de militantes na floresta

SERGIO TORRES * Folha de São Paulo - Domingo, 21/06/2009
ENVIADO ESPECIAL A SÃO DOMINGOS DO ARAGUAIA (PA)

Considerado por historiadores o momento em que a guerrilha ruiu de modo definitivo, a chacina da noite do Natal de 1973 teve uma testemunha que ficou calada por 36 anos e meio.
Localizado pela Folha na região do Araguaia, Nelson Miranda Cortes, 75, disse ter ensacado e colocado dentro de um helicóptero os corpos de quatro guerrilheiros metralhados. Um deles, contou, era Maurício Grabois, comandante militar do movimento organizado na selva amazônica pelo então clandestino PC do B.
Os cadáveres jamais apareceram. Foram enterrados, segundo Cortes, em uma base do Exército na área chamada de Bacaba, margem esquerda da rodovia Transamazônica, sentido Marabá (PA), ainda hoje a principal cidade do Araguaia.
A matança ocorreu na localidade de Grotão dos Caboclos, entre os hoje municípios paraenses de São Domingos do Araguaia e São Geraldo do Araguaia. Já em debandada pela floresta que então cobria a região, os guerrilheiros marcaram um encontro no lugar, na tentativa de reagrupar as forças e escapar do cerco militar.
Cortes, aos 40 anos, era um dos guias das tropas de profissionais do Exército e da Marinha que percorriam o Araguaia. Recrutado, segundo ele, à força, passou dois anos e seis meses como mateiro a serviço dos militares. "Eles estavam em cima de um morrinho, preparando comida, abrindo um jabuti. Os militares atiraram na certeza que estavam matando. Eles já sabiam que iam matar", disse o lavrador, que ganha R$ 460 de aposentadoria e reivindica indenização na Comissão de Anistia do Ministério da Justiça por supostos maus-tratos por parte dos militares.
Cortes conta que os guerrilheiros sabiam que estavam sendo perseguidos por quatro colunas militares ("uns 20 e tantos homens"), mas, famintos, não tinham como reagir.
Mesmo assim, quando os militares atacaram, muitos conseguiram escapar, entre eles Osvaldo Orlando Costa, o Osvaldão, mais famoso comunista do Araguaia. Osvaldão foi morto cerca de um mês depois.
Após a chacina natalina, o guia disse que viu quatro corpos, dos quais identificou os de Paulo Rodrigues e de Ari (Arildo Airton Valadão). Na identificação de Ari, ele pode ter se confundido. A vítima pode ter sido o guerrilheiro Amaury (Paulo Roberto Pereira Marques), desaparecido naquele Natal e que estava no grotão.
Cortes viu ainda dois corpos de homens. Não os conhecia. Mas um deles "era um velho", que os militares identificaram como Maurício Grabois, o Mário, chefe da organização.

Indenizado diz que agora terá vida tranquila
DO ENVIADO A SÃO DOMINGOS
DO ARAGUAIA (PA)
Até o fim da vida, o camponês Raimundo Morais da Silva, 71, receberá por mês o equivalente a dois salários mínimos (R$ 930). De uma só vez, o governo pagará a ele a quantia de R$ 107.492,50. A Comissão de Anistia concluiu que Silva "foi preso, torturado, humilhado na frente do filho e obrigado a abandonar a sua terra". (ST)


FOLHA - O que aconteceu com o sr. durante a guerrilha?
RAIMUNDO MORAIS DA SILVA - No tempo da guerra eu sofri. Não sei nem como escapei. Eu e mais dez irmãos sofremos demais.
FOLHA - Sofreu como?
SILVA - Tomaram o que eu tinha, me botaram na rua. Morava na roça, destruíram tudo, botaram tudo abaixo.
FOLHA - Mas o sr. tinha ligações com os guerrilheiros?
SILVA - Diziam que a gente estava ajudando os paulistas.
FOLHA - E ajudava?
SILVA - Eu via eles. Eles tomavam água lá em casa.
FOLHA - O sr. está satisfeito com o dinheiro?
SILVA - Estou. Com esse dinheiro vou viver tranquilo o resto da minha vida.


Operação sumiu com os cadáveres, dizem antropólogos
DO ENVIADO A SÃO DOMINGOS DO ARAGUAIA (PA)
Antropólogos argentinos encontraram em 1996 indícios no Araguaia de uma "operação limpeza" para o sumiço dos cadáveres dos guerrilheiros mortos por militares.
No relatório à Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos do governo do então presidente FHC (PSDB), que os contrataram, os antropólogos relatam que a cova improvisada na floresta foi reaberta após o depósito dos cadáveres. Em 1997, a mesma equipe localizou na Bolívia os restos mortais do guerrilheiro argentino Ernesto Che Guevara (1928-1967).

Lavrador não indenizado diz que vai recorrer
DO ENVIADO A SÃO DOMINGOS DO
ARAGUAIA (PA)
O lavrador aposentado Joel Rodrigues de Souza, 65, chorou ao saber que não estava na lista de contemplados com a indenização do governo. Ao lado da irmã Edna, 59, que também não foi beneficiada, ele disse que vai recorrer da decisão. Edna diz que também não desistirá. Ela relatou ter sido estuprada por militares. (ST)


FOLHA - O que aconteceu com o sr. durante a "guerra" [modo como o combate à guerrilha é chamado na região]?
JOEL RODRIGUES DE SOUZA - Perdi o barraco, fiquei 90 dias na cadeia, levei choque nas mãos e na orelha. Passei 13 dias sendo torturado.
FOLHA - Por que fizeram isso?
SOUZA - Me chamavam de terrorista.
FOLHA - Mas o sr. tinha ligações com os guerrilheiros?
SOUZA - A gente facilitava as coisas para o Paulo, o Juca, a Dina [como alguns guerrilheiros eram conhecidos na área], eles eram médicos.
FOLHA - E agora?
SOUZA - Não perdi a esperança. Ainda escuto pouco do ouvido esquerdo. Vou pedir novamente [a indenização].

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